
A arte do Louco
Louco é o nome artístico de Boaventura da Silva Filho nascido em 1929 entre os anos 1930 ou 1940. Boaventura começou a esculpir nos anos 1960 junto com seu irmão Clóvis Cardoso da Silva. Eles trabalhavam como barbeiros e, enquanto esperavam seus clientes para cortar cabelo, começaram a fazer pequenos cachimbos em “cascas de cajá. Aos quais foram acrescentando rostos e retratando, em miniatura, personagens e cenas, como jogos de futebol que mobilizavam a cidade. Passaram a transformar raízes, pedaços de madeira abandonados provenientes de construções em ruínas em trabalhos de grande plasticidade.
“Isso é trabalho de louco”
Ainda nos anos 1960, Boaventura da Silva Filho foi apelidado de Louco por freiras de um colégio tradicional da cidade de Cachoeira. Que, ao passar por perto da barbearia de Boaventura e Clóvis e ver aqueles trabalhos pouco convencionais, expostos na janela. Diziam às crianças: “Isso é trabalho de louco”, e assim ele começou a ser chamado por outras pessoas da cidade. Na mesma década, Boaventura decidiu levar as suas peças para tentar vendê-las no Mercado Modelo em Salvador. Onde conheceu Carlos da Silva Teixeira, comerciante que passou a viajar, com frequência, para Muritiba, cidade perto de Cachoeira.
Onde o escultor residia com sua esposa Alice Gama das Neves e seus filhos. A fim de buscar as peças de Louco para revender no mercado. Carlos Teixeira aconselhou-lhe a assinar o nome “Louco”, que estava sendo bem aceito pelo público. A partir de então, seu irmão Clóvis adotou o cognome Maluco e seu sobrinho José Cardoso Araújo passou a assinar Doidão.
Multicultural do Recôncavo
A produção de Louco aconteceu no contexto multicultural do Recôncavo, onde predominam as culturas religiosas de matrizes africana e católica. Que disputaram por espaço através de processos de repulsa e de confluência ao longo dos séculos. Batuques, procissões e festas organizadas por irmandades católicas e em terreiros de candomblé. Assim como cultos domésticos, fazem parte do dia-a-dia da vida de muitas pessoas da cidade.
É do imaginário coletivo e individual que provém a iconografia da obra de Louco. Que esculpiu imagens de Cristo, Santa Ceia, orixás (Exu, Oxalá, Iemanjá, Oxumaré, Obaluaiê etc.). Ogãs tocadores de atabaques, adorações, carrancas e outras figuras fantásticas. Segundo Frota, uma veemente galeria de personagens sobrenaturais, que se distribuem entre a iconografia católica e afro-baiana”.
As adaptações das formas ao suporte, que pode chegar a mais de três metros, levaram Lélia Coêlho Frota a comparar as composições do escultor. Com a escultura românica espanhola e com produções africanas, por fugirem ao realismo das proporções da figura humana. O que se destaca é o arranjo das formas, que surgem no suporte de modo inesperado. Além de esculturas, fez móveis de madeira decorados, que eram vendidos por antiquários locais, pois também são trabalhados com signos visuais.
Criatividade e originalidade
Nas figuras humanas criadas pelo escultor Louco, sobretudo nos anos 1970. Predominam figuras com olhos horizontalmente rasgados, quase fechados, nariz fino e longo, e cabelos escamados ou estriados. Essas características são acompanhadas das livres proporções dos corpos. Louco passou a esculpir figuras de olhos esbugalhados, que marcam diversos trabalhos que realizou nos anos 1980, dando vazão a sua criatividade.
São exemplos da sua originalidade duas peças conservadas no Ateliê de Louco Filho. A primeira intitula-se Obá, antropomorfo (homem-crocodilo) de braços abertos, e São Nicodemo, esculpido com órgão sexual avantajado, como tradicionais representações de Exu. Também é significativa a imagem de Cristo, que aparece na publicação Artistas da Escultura Brasileira de 1986. Nessa peça de Louco, cabelo e barba formam uma máscara escamada, abrindo espaço para aproximações, por parte do público, com a arte de outros povos.
Deixou fluir o imaginário
Não há testemunhos de que o artista Louco frequentasse terreiros de candomblé, mas é provável que tenha ido pelo menos como visitante. Ele foi sensível às imagens da religiosidade, começando pelas imagens de Cristo. Muitas delas intituladas Oxalá, o que tem relação com o sincretismo religioso afro-baiano. Acentuado na época em que produziu e que pode ser observado em muitas práticas religiosas ainda. Deixou fluir o imaginário religioso, para o qual contribuiu com reelaborações resultantes da sua imaginação em face aos veios da madeira. A sua obra plástica resulta dessas confluências em que se articulam o individual e o social.
Longe da zoada com um radinho.
Portanto ao longo de sua vida como escultor, além da barbearia e da sua própria casa. Teve oficina ou ateliê em diferentes lugares da cidade de Cachoeira. Na Praça 25, na Pitanga e no Alecrim (zona rural de Cachoeira). A sua preferência era por lugares tranquilos, o que pode ser constatado: “Trabalho com inspiração e amor. “Às vezes me afasto de tudo e vou para o mato. Fico lá sozinho, sem zoada, só com o meu radinho e os troncos de madeira, longe da mulher, dos dez filhos, e fregueses.
Louco e os grandes painéis
Nos anos 1970 e 1980, o apoio de Aloísio Berto da Silva e esposa foi fundamental para o Louco e descendentes. O casal tocava um bar muito frequentado por artistas e turistas, a Cabana do Pai Thomaz na Praça 25 de Junho. Onde podiam ser adquiridas cerâmicas de Tamba Xavier e esculturas de Louco, filhos e os sobrinhos. Nos anos 1980, foi aberta a pousada com o mesmo nome do bar, para a qual “Pai Thomaz. Encomendou aos escultores da família de Louco grandes painéis e móveis. A ascensão artística da família também contou com o incentivo da artista plástica Noelice da Costa Pinto. Discípula de Hansen Bahia, e que atuou promovendo a cultura em Cachoeira.
A arte primitiva
Já em Salvador, foram os contatos feitos no Mercado Modelo nos anos 1960 que lhe proporcionaram uma inserção no mercado e o contato com artistas. Além de Carlos Teixeira, de quem foi “compadre” e amigo, estabeleceu aproximação com Jorge Amado, Carybé e outros artistas. E Jorge Amado o incluiu no livro Bahia de Todos os Santos.
No Mercado, nas galerias, em seu atelier na cidade de Cachoeira. Encontram-se as ceias e os Cristos de Louco, o excelente Boaventura da Silva Filho que de louco nada tinha. E sim um talento e uma vocação sem limites. Entre os escultores primitivos da Bahia, o primeiro, realmente impressiona.
Na Bahia, “arte primitiva” era o termo usado pela crítica baiana dessa época como contrário à “arte erudita”. Embora sabe-se, contudo, que os limites entre essas categorias são fluidos, sobretudo, no século XX, quando tantos movimentos quebraram com padrões estabelecidos.
Um grande legado
Louco participou da exposição O Espírito Criador do Povo Brasileiro em 1972, coleção Abelardo Rodrigues, em Brasília. Integrou a exposição 7 Brasileiros e seu universo em 1974, com curadoria de Clarival do Prado Valladares. No exterior expôs na mostra no Centro Domus, de Milão em 1972.
Louco foi um dos escultores escolhidos para representar o Brasil no II Festival de Arte Negra em Dakar (Senegal). Com sete trabalhos datados de 1973 encaminhados pela Campanha Nacional de Defesa do Folclore. Participou da Mostra Brésil, Arts Populaires em 1987, no Grand Palais (Paris), com curadoria de Lélia Coelho Frota.
No Museu da Cidade (Salvador), há uma escultura (“Sem Título”) de Louco datada de 1978. Na qual se misturam à imagem de Cristo, santos e orixás. Ele participou de exposições permanentes (1980, 1984 e 1994) no Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular (CNFCP, Rio de Janeiro). Que conserva várias obras de sua autoria, e na Galeria Estação em São Paulo.
O despertar dos Jovens
Uma das preocupações de Louco, era que seus filhos tivessem um ofício, pois, além de ter uma família numerosa. As oportunidades de mercado de trabalho eram muito limitadas para os jovens da região. Dos onze filhos, sete eram homens. Quatro deles se tornaram escultores (Celestino, Mário, José e João), mas a sua influência também foi grande sobre seus sobrinhos. Bolão, Doidão, Dory, Maluco Filho, Filho de Maluco, além de ter despertado o interesse pela escultura em outros jovens de Cachoeira Fory e Mimo. Atualmente seus netos Leonardo (Léo) e Wallace (Téo), representam a terceira geração de escultores da família.
Uma Escola de Louco
Considerado portento formador de uma “escola” por diversos autores (COIMBRA et al., 2010, p. 133, LODY; MELLO E SOUZA, 1988, p. 132) e de uma tradição por seus filhos e sobrinhos. Segundo Giulio Carlo Argan:
O conceito de “escola” implica a concepção do artista como “mestre”: aquele que não só elabora um estilo próprio. Mas também transmite as suas características ao círculo de discípulos, dos quais alguns serão meros repetidores e continuadores. Outros desenvolverão de maneira original e inovadora o ensinamento recebido, apresentando-se por sua vez como mestre de uma nova escola.
A ideia de escola está muito ligada à noção de estilo. De fato, há uma preocupação por parte de seus descendentes em dar continuidade à sua obra, através de técnicas, temas e processos de criação. Mas também têm as suas preferências e inovam com soluções plásticas que vão sendo absorvidas entre eles. A arte resulta de um processo natural, no qual não há preocupação com a originalidade.
À medida que surgem novas situações diante do suporte ou uma ideia nova. Porém aparecer novos modelos que vão sendo incorporados à iconografia e repetidos, assim como utilizados pelos diversos escultores da família.
O sistema das artes
Nem sempre é fácil distinguir a autoria, o que sinaliza que é preciso desconstruir conceitos rígidos de arte. Como produção individual, porque esculpir como o mestre é um dos parâmetros para esses escultores. Por outro lado a colocação da assinatura é parte de um processo de individualização presente desde a projeção de Louco no sistema das artes. Com problemas de saúde, o artista faleceu em 1992, deixando muitos seguidores e obras surpreendentes espalhadas pelo Brasil e pelo exterior.
Fontes: http://www.dicionario.belasartes.ufba.br/wp/verbete/boaventura-da-silva-filho-o-louco/